14 Julho 2020
A Europa ainda é cristã?
Olivier Roy
"É compreensível que o Papa tenha se lastimado, mas lembre-se de que Santa Sofia é em primeiro lugar um símbolo para os ortodoxos”.
Olivier Roy está convencido de que a "provocação", como ele a define, de reconverter a antiga basílica e museu de Santa Sofia em uma mesquita é uma escolha perdedora para Recep Tayyip Erdogan, também no relacionamento estratégico com Vladimir Putin, grande defensor da Igreja Ortodoxa. "Essa decisão não apenas acentua a distância com os estadunidenses e o Ocidente em geral, mas pode abrir novas tensões com a Rússia", explica o orientalista e político, cujo último livro se intitula, em tradução livre, A Europa ainda é cristã? Contra o novo nacionalismo.
A entrevista com Olivier Roy é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica, 13-07-2020. A tradução é de Luisa Rabolini.
Erdogan persegue a todo custo o sonho de um novo império otomano?
Em suas declarações, ele quer fazer do povo turco uma vanguarda de todos os muçulmanos, mas esse papel não lhe é reconhecido pelos outros países do mundo árabe, pelo contrário, a maioria rejeita a ideia de um novo modelo otomano. E, de qualquer maneira, ressalto que os otomanos não eram nacionalistas turcos. Não se pode dizer que o que é bom para a Turquia seja bom para a Umma (no Islã, a comunidade de fiéis, nde).
Ainda é uma tentativa de conquistar consensos no mundo árabe?
Não acho que as pessoas sairão às ruas para Erdogan no Marrocos ou na Tunísia. Do ponto de vista das alianças na região do Oriente Médio, Erdogan está cada vez mais sozinho, na prática, ele só pode contar com o Catar. E hoje se isola ainda mais porque, no nível do diálogo inter-religioso, o Islã árabe-sunita segue na direção contrária, fez muitas aberturas, com as posições da Liga Muçulmana Mundial ou a visita do Papa a Abu Dhabi.
O presidente turco quis satisfazer as franjas mais radicais?
As pressões para converter Santa Sofia em uma mesquita não vinham tanto dos islâmicos, mas da extrema direita nacionalista. Basta ver como poucos militantes islâmicos tenham se manifestado em frente à antiga basílica nos últimos dias. Não acho que seja uma decisão que fortaleça Erdogan, sua liderança é muito frágil.
Hagia Sophia, Turquia (Foto: Pixabay)
Por que você acha que o novo Sultão é mais frágil?
Na primeira década dos anos 2000, construiu sua força no boom econômico, mas esse impulso acabou. Ultimamente, Erdogan foi colocado em dificuldade pela crise do Covid-19. Embora tenha um estado forte que teria os meios para lidar com a emergência, demorou a tomar medidas preventivas, negando inicialmente a gravidade da ameaça à saúde. Nas pesquisas, caiu bastante. Neste momento tudo está indo mal para ele.
No plano internacional, da Síria à Líbia, sua influência se fortaleceu.
É uma força ilusória. Nos teatros de guerra em que a Turquia está envolvida militarmente, direta ou indiretamente, os sucessos estão ligados às próximas escolhas da Rússia. Se a Rússia decidir reagir na Líbia ou na Síria, Erdogan estaria novamente em dificuldade. O diálogo entre Erdogan e Putin está preso por um fio.
Você vê relações com Putin se deteriorando?
Oitenta por cento dos cristãos orientais são ortodoxos. De fato, a Rússia protestou contra a decisão de Erdogan. O presidente turco corre grande risco porque precisa encontrar compromissos com Moscou. Agora tudo se complica.
Entre os europeus, Emmanuel Macron adotou a posição mais dura contra a Turquia, nem sempre seguido por outros governos. O líder francês também está isolado em seu duelo com Erdogan?
Tornou-se um conflito pessoal, algo que não me parece oportuno. Sobre a Líbia, por exemplo, Macron não tem lições para ensinar a Erdogan, dado que, do ponto de vista do direito internacional, a França apoiou uma força rebelde, enquanto a Turquia, como a Itália de resto, ficou do lado do governo oficial.
Mas existe o problema da aliança atlântica: as escolhas de Erdogan não colocam a OTAN em crise?
Eu não seria tão dramático. Já aconteceu que os países da OTAN tivessem alianças diferentes em teatros de guerra. O problema no máximo é a relação entre a Turquia e a Rússia no plano técnico-militar. Mas estou convencido que para a OTAN a decisão sobre Santa Sofia, que complica o relacionamento com Moscou, no fim poderia ser uma boa notícia.
A Turquia está se afastando cada vez mais da Europa?
Os governos europeus estão finalmente percebendo que Erdogan não nos ajuda a resolver o problema da radicalização. Por muito tempo, deixamos a Turquia gerir o Islã na Europa, através do controle das mesquitas. Foi uma bobagem colossal. Hoje ficou claro que Erdogan está em uma posição agressiva.
Essa última manobra é uma provocação com consequências irreversíveis, pelo menos a curto prazo.
Se é verdade que Santa Sofia se transformou várias vezes, não se pode imaginar uma nova mudança antes de muitas décadas.
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“A escolha de Erdogan abre uma séria brecha na aliança com Putin”. Entrevista com Olivier Roy - Instituto Humanitas Unisinos - IHU